Cultura
19 de novembro de 2021
10:06

Dia do cordelista: pesquisa revela detalhes inéditos da história de Leandro Gomes de Barros

Riqueza da obra de L.G de Barros é inegável, mas os detalhes sobre a vida do escritor ainda são alvo de disputas narrativas.

Matéria por Lua Lacerda

Para Drummond, ele foi “o rei da Poesia do Sertão, e do Brasil em estado puro”. Para Ariano Suassuna, é “o responsável por 80% da glória dos cantadores atuais”. Fonte de inspiração para o clássico “O Auto da Compadecida”, autor de uma obra vasta, estima-se que sejam mais 1.000 folhetos publicados. Esse é Leandro Gomes de Barros, paraibano do Alto Sertão que ganha no dia 19 de novembro uma generosa homenagem: sua data de nascimento marca a celebração nacional ao dia do cordelista. 

Que a obra de Leandro possui qualidade e importância ímpar na história da literatura em cordel é inegável. Seu trabalho gráfico contribuiu largamente para a difusão dos folhetins Brasil afora. Ele fazia todo o trabalho, desde a escrita dos versos à sua difusão. Assim, os textos de Leandro viajaram por anos de Pernambuco até a porta da casa do poeta Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro. Aos poucos, todos os estados brasileiros foram tendo contato com a riqueza da literatura produzida nos sertões, nos engenhos e cidades nordestinas. O trabalho de Leandro deu asas à imaginação dos brasileiros às imagens do nordeste brasileiro e da identidade nordestina.

Figura central na história da literatura nacional, é natural que tenha sua trajetória pessoal investigada. São pelo menos duas biografias já escritas e outras séries de pesquisas espalhadas. Gutemberg Pereira, o mais recente pesquisador a entrar nessa disputa de narrativas, garante que há muitas informações equivocadas, insuficientes ou simplesmente ignoradas por parte dos biógrafos de L.G de Barros. O escritor paraibano Gutemberg Pereira, natural de Paulista, no Sertão paraibano, pertencente à mesma família do poeta, formado em direito, historiador por hobby, autor do livro “Arraial Queimado do Paulista”, está em processo de conclusão da mais nova biografia sobre Leandro que possui informações, não apenas inéditas, mas que contrariam certezas que tínhamos até então sobre a vida de Leandro. Ao Jornal da Paraíba, Gutemberg conversou sobre algumas das informações únicas de sua obra.

Escritor paraibano Gutemberg Pereira, autor do livro “Arraial Queimado do Paulista”.

A morte do autor

Os pesquisadores são unânimes em afirmar que o escritor foi vítima da Grande Gripe. Alguns também dizem que após sua prisão pelo governo do estado de Pernambuco, Leandro entrou em estado depressivo, facilitando sua debilidade física. No entanto, Gutemberg teve acesso à certidão de óbito que comprova que, na realidade, Leandro faleceu em março de 1918. A gripe espanhola só chegou ao Brasil em setembro de 1918, com o desembarque de passageiros contaminados do navio britânico Demerara, vindo de Portugal. Ou seja, somente após seis meses da morte do escritor é que os primeiros casos foram detectados no Brasil. A declaração de óbito, assinada por seu filho Esaú Eloy, diz que Leandro morreu de um aneurisma. Teve uma morte súbita.

 Declaração de óbito, assinada por seu filho Esaú Eloy, diz que Leandro morreu de um aneurisma 

Suposta educação em Teixeira

Outra novidade que Gutemberg defende é que Leandro não teve acesso a uma biblioteca em Teixeira, no Sertão da Paraíba, supostamente pertencente ao seu tio, o padre Vicente Xavier de Farias. Para estudiosos do cordelista, teria sido dessa maneira que ele tornou-se um homem das letras. Gutemberg, no entanto, separou um capítulo de sua pesquisa para argumentar que o padre Vicente Xavier não era professor, como alguns colocam em textos biográficos, nem tinha interesse ou contato com a literatura de elite, ainda menos interesse em ensiná-la a Leandro. 

O padre era, na realidade, um famoso por não respeitar o celibato, um jogador nato e político local. Há documentos que apontam que ele era um agente dos correios, depois foi deputado provincial na 15ª legislatura, em 1864. Os padres eram homens cultos, mas o padre Vicente era tão envolvido com assuntos alheios à igreja que ao chegar em Teixeira, em 1846, ficou como vigário colado. Somente em 1889 ele assumiu o cargo de vigário da paróquia. 

Gutemberg concluiu também, por sua investigação acerca do contexto histórico, que era improvável que existisse essa biblioteca no Sertão da Paraíba no século XIX. Leandro deve, sim, ter tido acesso a alguma literatura, não através do tio, mas da convivência com os cantadores, pois existe registro que eles dispunham de uma certa literatura que circulava pelo sertão. Só posteriormente, em Pernambuco, Leandro desenvolveu suas habilidades literárias.

Mais uma vítima da seca

Algumas pesquisas atribuem à saída de Leandro da Paraíba uma possível discussão com seu tio, o padre Xavier. Ou então, nada dizem sobre. Gutemberg está convencido que Leandro saiu de Paulista para Teixeira, e em seguida para Pernambuco, fugindo da seca. A prova disso é o contexto histórico, pois 90% da população do Sertão saiu da região no mesmo ano em que Leandro se mudou para o estado vizinho. O pesquisador não encontrou nenhum registro que prove o atrito violento entre sobrinho e tio. O padre Vicente, apesar dos seus desvios de conduta, era um pacifista, e jamais seria capaz de usar de violência contra um sobrinho. Na realidade, Leandro foi só mais uma vítima da seca.

Contato com a cantoria nos engenhos da cana de açúcar

Desde Teixeira, a principal escola de Leandro era a cantoria, foi através dela que se formou poeta. O repente surgiu no Sertão, seu primeiro evento registrado aconteceu em Teixeira, em 1854. Começa na zona rural e aos poucos envolve o público urbano. Já em Teixeira ocorre o primeiro contato de Leandro com os cantores. Segundo Gutemberg, essa relação amadurece nos engenhos da cana de açúcar, em Pernambuco, onde o escritor foi parar fugindo da seca. 

A princípio, quando saiu do Sertão paraibano, foi para Ipojuca (PE), ao que tudo indica, trabalhar no corte da cana de açúcar com toda sua família. Afinal, esse era o final do século XIX, e já existiam pelo menos três correntes migratórias do Sertão. Para onde essas pessoas iam? Para o Sul, trabalhar com café, para os seringais do Norte ou para a cana de açúcar na Zona da Mata. 

Leandro possui um folheto chamado “Retirante” no qual aborda o tema de um imigrante que vai trabalhar na cana-de-açúcar. Apesar de se opor à ideia de que toda obra é autobiográfica, Gutemberg acha sugestivo que ele não tenha falado de um retirante do café ou do seringal. Para o pesquisador, há diversas experiências no folheto que Leandro parece ter se baseado na sua própria vivência nos engenhos. 

Imigrante do Sertão, inicialmente fixado na zona rural pernambucana, Leandro se depara com a cantoria já existente nos engenhos da cana, aprofundando sua relação com ela. Esse contato foi criando ambiente para o início da cultura escrita e produção de cordel de L.G. de Barros.

Colônia portuguesa financiou o início da publicação do cordel

Segundo Gutemberg, essa informação nunca foi mencionada na história do gênero cordel. É uma das suas deduções únicas, a partir dos registros e documentos encontrados. 

Gutemberg teve acesso a uma documentação que comprova uma estreita relação de Leandro com membros proeminentes da colônia portuguesa no Recife desde a década de 1890, no início da produção de cordel, em que Leandro foi o pioneiro. Segundo registros, ele era muito próximo a Albino Andrade, administrador do Hospital Português, dono de grandes conglomerados econômicos. Há registros de que eles se reuniam no gabinete português de leitura. 

Para o pesquisador, isso leva a crer ter havido certo mecenato por parte da colônia portuguesa no início da publicação em cordel de Leandro, portanto, no início da publicação do cordel tal como o conhecemos hoje. Dito de outra forma, é provável que a Colônia Portuguesa tenha financiado o início da publicação do Cordel no Brasil.

Para assegurar sua teoria, Gutemberg escolheu manter os documentos inéditos e divulgá-los apenas em seu livro, que está em processo de conclusão. 

Leandro não é natural de Pombal, como dizem

Outros pesquisadores também advertem isso. Para Gutemberg, convencionou-se biografar o poeta como sendo natural da cidade de Pombal porque o sítio Melancias, no qual nasceu, se localizava nas proximidades de Pombal à época. Porém, é uma questão de simples resolução: Pombal ainda não era um município em 1860, vindo a se tornar cidade somente no ano de 1862. Com a emancipação política do distrito de Paulista (PB) em 23 de dezembro de 1961, o sítio Melancias ficou incluído no perímetro municipal da nova cidade de Paulista. 

Ademais, através de seu estudo sobre a genealogia de L.G de Barros, Gutemberg conta que a história da família do poeta está umbilicalmente ligada à povoação de Paulista desde o século XVIII, com a chegada dos seus primeiros ancestrais, vindos de Pernambuco. Os laços familiares, na sua essência, sempre foram com a povoação de Paulista, desde o passado mais remoto da sua família no Sertão paraibano.

Além dos detalhes revelados ao Jornal da Paraíba, Gutemberg afirma que sua obra tem a inédita história da genealogia de Leandro, a começar por como sua família foi parar no Sertão paraibano. O historiador acessou arquivos cartorários, eclesiásticos e documentos da Torre do Tombo, do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, assim como documentos da Justiça de Pombal, processos do século 18, fontes que ninguém ainda tinha explorado, mas que, hoje em dia, estão disponíveis a quem quiser buscar por eles. Além disso, recorreu à pesquisa jornalística, à pesquisa de campo, à tradição oral da família e ao longo estudo da obra do autor.

A representação do “ser nordestino” na obra de L.G de Barros

Independente das divergências sobre a biografia de L.G de Barros, os estudos sobre a riqueza da obra literária seguem destacando sua importância tanto na difusão do gênero cordel pelo Brasil afora quanto na confrontação das imagens estereotipadas do ser nordestino dentro da literatura.

Emmanuele Monteiro é doutora em linguística pela Universidade Federal da Paraíba. Ela estudou em sua dissertação de mestrado a representação do homem e da mulher nordestina na obra de Leandro Gomes de Barro. Nos muitos folhetos, o que a linguista encontrou foi uma regularidade arquetípica de um personagem que usa esperteza e astúcia como forma de sobrevivência. Em seus cordéis, há uma construção do personagem “esperto”, regionalização do cômico nacional “o malandro brasileiro”, que sempre tem um “jeitinho” para resolver qualquer assunto. 

Para Emmanuele, isso significa principalmente o riso como elemento dessacralizado da ordem social, ou seja, um elemento de resistência. Esse ser “esperto”, que também está presente na obra de Ariano Suassuna e na música de Zé Ramalho, para montar uma série histórica, está dentro da mesma bacia semântica que o personagem Jeca Tatu, de Macunaíma, do Malandro Carioca e do Trickster, mas se diferencia pela regionalização das marcas identitárias que L.G. de Barros emprega em seus personagens. 

O riso é o trote social. Nos cordéis de L. G. Barros, e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, observamos que o riso, além de desestabilizar a ordem social, é denunciativo. Dizer o que se quer e expor a sua “vontade de verdade” sem sofrer sanções, é uma das virtudes da ironia, por isso o poeta popular faz tão bom uso dela. Seus versos, muitas vezes marcados pelo riso, denunciam as mazelas do povo nordestino de sua época.

Nesse sentido, a reiteração do estereótipo do ser “esperto” não serve apenas para ratificar uma “realidade”, serve como um instrumento de denúncia, que é feita pelo personagem astucioso através do riso, enquanto mecanismo de subversão da ordem. Rir ou fazer rir das próprias desgraças é uma forma de resistência e é justamente aí que se situa o “esperto”. Esse personagem em nenhum momento bate de frente com seus opositores, ele resiste de forma sutil e suas armações garantem comodidade ao texto.

Para a pesquisadora, as narrativas de Leandro confrontam o discurso cristalizado que tem o nordestino como um efeito do banditismo social, da má gestão da seca e do processo migratório para a região Sudeste. Aos curiosos, Emmanuele indica a leitura dos cordéis A Vida de Cancão de Fogo e O Testamento de Cancão de Fogo, “pois as estripulias e armações desse personagem ainda provocam o riso, mesmo um século depois de serem escritas”. Para ela, Cancão de Fogo é o Macunaíma das narrativas de Cordel, é  “o pai e mãe é muito bom/barriga cheia é melhor”.

Emmanuele Monteiro na 1ª apresentação de sua pesquisa sobre L.G. de Barros, em outubro de 2006.

Cordelteca Leandro Gomes De Barros

A Cordelteca Leandro Gomes de Barros fica localizada em Pombal, cidade vizinha a Paulista, cidade natal de Leandro, no Sertão paraibano. O projeto foi idealizado e é coordenado pela professora de literatura Ione Severo, que no início de sua vida letiva, nas escolas estaduais do interior paraibano, se deu conta do quanto os alunos não conheciam nem o cordel, nem a obra de seu conterrâneo L.G de Barros.

Encontrando dificuldade em comprar cordéis para seus alunos, Ione decidiu que ela mesma comercializaria os folhetins de diversos autores, com o objetivo de tornar a leitura acessível e contribuir com a divulgação do cordel e dos cordelistas nordestinos, principalmente do príncipe dos poetas brasileiros.

A cordelteca foi inaugurada em 2015, no encerramento da Feira de Cordel Leandro Gomes de Barros, também promovida por Ione Severo, em comemoração aos 150 anos do poeta. O evento teve 8 dias de programação e ocorreu em vários espaços da cidade de Pombal, envolvendo as escolas estaduais de 8 municípios do sertão. Em todos os dias houve uma feira em praça pública com declamadores. Chegaram a participar mais de 50 cordelistas, dentre eles Klévisson Viana, conhecido cordelista e autor de história em quadrinhos.

Todo o acervo inicial foi doado pelos cordelistas de todos os estados nordestinos. Hoje dispõe de 1.100 itens para leitura e pesquisa, entre cordéis, livros e CDs. Por enquanto, a cordelteca ainda não tem sede própria, trata-se de um projeto itinerante de incentivo à leitura. Embora disponha de outros gêneros literários em seu acervo, seu principal material é o cordel e sua dinâmica é levar a leitura às escolas e a outros ambientes e eventos. Onde for bem recebida, pode ser convocada.

Tenho participado de muitos projetos nas escolas e universidades quando os professores têm o objetivo de incentivar a leitura. A cordelteca também desenvolve oficinas de leitura, palestras, rodas de conversa sobre cordel a partir do que é solicitado pelos professores”
Ione Severo, coordenadora da Cordelteca Leandro Gomes de Barros

Para Ione Severo, o maior objetivo da cordelteca é promover a leitura e o interesse pela obra de Leandro e pelo gênero cordel. Como contou ao Jornal da Paraíba, a cordelteca tem como propósito fazer “vivenciar momentos prazerosos com essa literatura, aprender sobre a nossa cultura através da leitura do cordel, conhecer os autores cordelistas que mais nos representam e aprender também que o cordel é uma fonte inesgotável de temas, história, informação e poesia”.

“Os folhetos eram expressão da poesia popular. O casamento entre poetas e um público”

Astier Basílio, escritor campinense que em 2014 venceu o Prêmio Nacional de Dramaturgia da Funarte, é um conhecedor e experiente leitor da obra de Leandro. Para ele, Leandro Gomes de Barros é “a mais completa realização da literatura de cordel, como que houvesse sistematizado em sua obra todas as tendências e gêneros”.

Astier conta que os folhetos também serviam como expressão jornalística, como uma forma de falar sobre os acontecimentos do hoje, ganhando em Leandro Gomes seu autor de maior expressão. À época não havia esta ideia de difusão do gênero. Aliás, o próprio termo cordel veio a ser inventado muitos anos depois da morte de Leandro que, evidentemente, jamais o usou. 

Para Astier, “os folhetos eram expressão da poesia popular. O casamento entre poetas e um público. Tanto os poetas como seus leitores eram compostos em sua maioria de pessoas pobres. Escrever poesia era o sustento de Leandro. Era como ele pagava as contas e lutava para sobreviver”.

Astier Basílio é jornalista, dramaturgo e escritor.

“Leandro é uma espécie de planeta no universo da cultura”

Um poeta sempre gera novas gerações de poetas. Diversos cordelistas e repentistas dão continuidade à obra de Leandro, como é o caso de Daudeth Bandeira. Poeta repentista cantador, escritor, cordelista e advogado, Daudeth é natural de São José de Piranhas, no Alto Sertão paraibano, membro de uma família de poetas cantadores, começando por seu avô materno, Manoel Galdino Bandeira.

Daudeth diz que Leandro Gomes de Barros “representa muito em toda a cultura nacional. Ele, Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, Manoel Galdino Bandeira e outros desse naipe influenciaram na arte de muitos. Mas acho que Leandro é uma espécie de planeta no universo da cultura!”.

O repentista compôs em 2015 uma canção chamada “Sonho de Leandro”. Na época, ele estava escrevendo o livro “Dias D’versos” com o poeta pombalense José de Sousa Dantas. E então lhes surgiu o mote: “Pombal revive cantando o que Leandro sonhou!”.

Daudeth contou que fez a canção em um pouco tempo, “antes de amanhecer plenamente o dia eu já cantando a referida canção. Eu acho que foi assim como um parto sem prenhez! Nunca antes tinha pensado escrever algo neste sentido e saiu assim com uma espontaneidade abismal”.

O repentista diz-se extremamente feliz por ter feito essa canção, e que a canta sempre “como se estivesse homenageando um dos gênios responsáveis pela minha verve e minha arte”. Ao Jornal da Paraíba, Daudeth generosamente se dispôs a cantá-la (assista ao vídeo acima). Assim, reúne a um só tempo o passado e a atualidade da Paraíba, pois na história da arte paraibana, a cantoria e a poesia dividiram o berço.